Por Fernanda Cappellesso
“Vale a pena ser honesto no Brasil?” A pergunta, lançada como provocação no último capítulo de Vale Tudo, em 1989, segue atravessando o país 36 anos depois — mas agora, em um ambiente de múltiplas telas, outros códigos morais e novas formas de consumo. O remake da novela, exibido atualmente pela TV Globo, não atinge números altos no Ibope. Mas explode nas redes sociais. No TikTok, cenas ganham versões legendadas, irônicas, emocionadas. No X (ex-Twitter), personagens se tornam trending topics. No Instagram, Odete Roitman virou ícone de comportamento. A novela voltou ao centro do debate — só mudou de endereço.
O que explica esse fenômeno, em que o “fracasso” televisivo se transforma em sucesso digital? Para entender, é preciso revisitar o país de 1988 e compará-lo com o Brasil de hoje. E, principalmente, olhar para as quatro personagens femininas que, em 1989, simbolizavam dilemas éticos nacionais — e que agora têm suas leituras completamente ressignificadas.
O Brasil de 1988: entre a ética e o caos
Quando Vale Tudo foi ao ar pela primeira vez, o Brasil estava em reconstrução. A ditadura havia terminado recentemente. A nova Constituição acabava de ser promulgada. A inflação era diária. A eleição direta para presidente — a primeira desde 1960 — estava prestes a acontecer. Havia esperança, mas também medo, indignação, cansaço moral.
Naquele contexto, a novela ocupava um papel central no cotidiano brasileiro. O horário nobre da Globo era uníssono nacional. E Vale Tudo soube captar, como poucas obras antes ou depois, o estado de espírito do país: um desejo intenso por justiça, por redenção ética, por certezas morais.
Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères criaram uma narrativa que cruzava a ambição e a honestidade, a corrupção e o mérito, com personagens femininas que sintetizavam essas contradições.
Quatro mulheres, quatro retratos do Brasil — ontem e hoje
Maria de Fátima (Glória Pires), na primeira versão, era a filha sem escrúpulos. Disposta a tudo — até a vender a própria mãe — para ascender socialmente. Representava a crítica feroz ao Brasil da esperteza, da ascensão sem ética. Em 1988, era odiada por boa parte do público. Em 2025, é… compreendida. Hoje, muitos a enxergam como uma mulher que não aceitou o destino imposto de pobreza, que usou as armas que tinha, que se recusou a ser invisível. As redes sociais a defendem, ironizam suas falas, celebram sua ambição. Ela virou símbolo do “subir na vida” num país onde a meritocracia nunca foi para todos.
Raquel Accioli (Regina Duarte), a mãe traída e honesta, vendia sanduíche na praia para sobreviver e reconstruir a vida. Em 1988, era exemplo. Era o Brasil que resistia, o Brasil correto. Em 2025, ela é vista com desconfiança por parte do público mais jovem. Muitos a consideram iva, “boazinha demais”, “moralista”, até “inocente”. Raquel, que foi heroína para uma geração, hoje é lida como frágil demais para os tempos de cinismo e pragmatismo.
Odete Roitman (Beatriz Segall) era o rosto da elite cruel. Empresária arrogante, racista, manipuladora, via o Brasil com desprezo e as classes populares como subproduto do atraso nacional. Em 1988, ela era a vilã suprema. Hoje, virou meme. E mais: virou modelo. Nas redes, há quem diga que Odete “falava verdades”, que era “visionária”, que “não tinha paciência para a burrice do país”. Em tom de deboche ou iração genuína, ela se tornou símbolo de frieza estratégica — uma espécie de coach do caos. Sua morte foi, na época, comoção nacional. Hoje, é trend sonorizada.
Eleninha Roitman (Renata Sorrah), filha de Odete, era alcoólatra, sensível, amorosa, frágil. Em 1988, o público a via com compaixão. Em 2025, é alvo de memes e piadas. Muitos a chamam de “boba”, “fraca”, “coitada rica”. A mesma leitura se aplica à Raquel, mãe de Maria de Fátima. Ambas são percebidas como figuras quase ingênuas, que foram usadas, manipuladas, enganadas — e que, no olhar atual, não reagiram à altura. Numa era de mulheres que falam, enfrentam, viralizam e expõem, a fragilidade emocional se tornou quase uma falha de caráter aos olhos do público digital.
O país mudou. O público também.
Há 36 anos, o telespectador buscava na novela uma espécie de mapa ético. Quem era honesto? Quem era corrupto? Quem se dava bem? Quem pagava por seus erros? A narrativa precisava ser clara, quase didática. O mundo era dividido entre certo e errado. E o público queria um final que “desse o troco”.
Hoje, a audiência quer nuance. Quer conflito. Quer ambiguidade. E quer participar da interpretação. O remake de Vale Tudo não atinge grandes picos de audiência na TV porque o Brasil já não vê novela como em 1988. O consumo é múltiplo, fragmentado, móvel. As pessoas assistem no Globoplay, em cortes no YouTube, no TikTok. E, mais que isso, debatem, reescrevem, reinterpretam.
A Maria de Fátima virou símbolo de ambição num país sem mobilidade social. A Odete virou meme de sinceridade crua num ambiente de cinismo político. A Raquel e a Eleninha, que antes inspiravam empatia, hoje inspiram análise crítica — ou desprezo.
Não é fracasso. É transição.
Dizer que o remake de Vale Tudo fracassou porque não lidera no Ibope é tão míope quanto medir sucesso de banda por venda de CDs. A métrica da audiência mudou. O impacto cultural, hoje, não se mede só por aparelhos ligados, mas por conversas geradas. E a novela está, sim, no centro delas.
Em 1988, ela ensinava o Brasil a se indignar. Em 2025, ela ensina o Brasil a debater. E talvez, por isso, siga tão relevante.
Afinal, ainda não temos resposta para a pergunta: vale a pena ser honesto no Brasil? Mas hoje, talvez mais do que nunca, temos outras perguntas: quem é honesta? quem é esperta? e quem dita essas regras?
No remake, a novela não dita mais o tom. Mas inspira a sinfonia — descomada, contraditória e absolutamente brasileira — das redes.
*Fernanda Cappellesso é jornalista, analista de mídia e comportamento cultural. Atua como editora de conteúdo político e colunista de cultura pop.
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